Depois tem gente que acredita que a
pobreza é que faz as pessoas
cometerem crimes. Não é. o que faz a
pessoa cometer um crime é sua indole
maldosa. Mesmo que a pessoa fosse
rica, seria criminosa. O mal existe, e
está no coração dos homens. Se não
fosse assim, todos os pobres do
mundo seriam criminosos. GN
Jorge Luis Martins viveu os primeiros 20 anos nas ruas de Porto Alegre.
'O Menino da Caixa de Sapatos' é escrito sem usar a palavra 'não'.
26 comentários
Quem encontra Jorge Luis Martins na rua pode não reparar as cicatrizes. Arrumado com camisa e calça social, com ares de profissional bem-sucedido e formado em administração, o homem agora escreve a própria vida. Nesta semana, ele lança em Porto Alegre seu segundo livro, “O Menino da Caixa de Sapatos” (Ed. O Sonho da Traça). Na obra infanto-juvenil, onde a palavra “não” foi substituída, Jorge relata sua trajetória. “Fui menino de rua. Dormi muito tempo em um cemitério porque era o local mais seguro para me abrigar”, relembra, emocionado.
Nascido prematuro de sete meses, pelas mãos de uma parteira em uma casa emprestada de Novo Hamburgo, na Região Metropolitana de Porto Alegre, Jorge viveu os primeiros dias de vida dormindo em uma caixa de sapatos para que os ratos não o comessem. “Minha avó nunca desistiu de mim. Não tive estrutura familiar. Minha mãe tinha problemas mentais e vagava pelas ruas. Meu pai foi ausente”, conta. Em 2010, o escritor teve seu primeiro contato com a literatura com “Meu nome é Jorge” (Ed. O Sonho da Traça): “Comecei a escrever há uns seis anos. Os conhecidos me estimularam, diziam que a minha vida precisava ser conhecida por todos”.
Escrever sobre uma história de sofrimento, abandono e superação não foi fácil, já que a cada linha as memórias reforçavam os sentimentos e machucados. “Me perguntei se eu teria o dom de escrever. Decidi que só escreveria sobre a minha vida e que, se mudasse apenas um jovem, já teria valido a pena”. Foi assim, entre lágrimas e lembranças, que nasceram as obras que já estão instituídas em escolas municipais do interior do Rio Grande do Sul como leitura obrigatória. “Criciumal, Tupandi, Taquara, Morro Reuter e Estância Velha são algumas das cidades em que o livro foi instituído. Participo também de um projeto na Fase dando palestras”, orgulha-se. A substituição da palavra "não" foi criada principalmente para contrapor a negatividade que passou. "Há várias maneiras de tu mostrares as consequências sem dizer 'não'. Às vezes o 'não' deixa as crianças mais curiosas", explica.
A educação nem sempre fez parte do seu cotidiano. Matriculado em uma escola pública, parou de frequentar na terceira série, pois sentia vergonha de quem era. “Eu ia rasgado, com chinelo de dedo, sujo, e não tinha merenda para levar. Duas vezes por semana era servido um lanche e frequentava mais por isso, para comer. Como eu pegava a merenda dos outros, eu ficava de castigo. Ninguém chegava perto de mim porque eu me urinava todo, cheirava mal. Era muito discriminado”.
O passado de Jorge mostra um fato que alarma. Dados levantados em abril de 2012 pela Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) sobre a população de Porto Alegre que vive nas ruas, apontou que pelo menos 1.347 pessoas estão sem moradia. Entre 2007 e 2008, Porto Alegre realizou um estudo em parceria com a UFRGS. Na ocasião foram encontradas 1.203 pessoas adultas em situação de rua. Na última pesquisa o aumento foi de pelo menos 12%.
A maior concentração de pessoas em situação de rua está no Centro Histórico, local onde Jorge começou a se redesenhar. “Porto alegre me adotou, fui trazido para cá com 12 para 13 anos. Trouxeram para me prostituir na Praça da Alfândega”. Com o chão de Porto Alegre como cama, catava papel na rua, doava sangue para receber o lanche, juntava restos de leite no lixo e, algumas vezes, roubava pão no desespero da fome. “A única coisa que diferencia um homem do outro é a vontade”, afirma convicto.
Mais tarde, conseguiu um emprego no restaurante da Assembleia Legislativa e dormia em uma pensão para lavar a única roupa que tinha no corpo. “Tudo que trouxe de bom aprendi com a minha avó, foram meus valores iniciais. Um dia antes de morrer, ela me fez prometer que não me tornaria um bandido, que eu seria um menino de bem na vida”. Com um foco, buscou na periferia da sociedade as forças necessárias para continuar e garante que não carrega rancor. “A raiva é um espinho que tu crava no coração e esquece de retirar. Quando pude, voltei para o meu pai e o ajudei, mesmo depois de ter apanhado muito. Cuidei da minha mãe até a morte dela”.
Hoje, dono de uma locadora de carros e corretor de imóveis, vive na sua própria casa e não esquece quem estendeu a mão nos momentos de desespero. “Muitos jovens não acreditam que eles podem ser médicos, professores ou empresários. Eles acham que isso é coisa para rico. Mas eu sou a prova viva de que isso acontece”, conclui.
Nenhum comentário:
Postar um comentário