segunda-feira, 23 de setembro de 2013

GUERRA URBANA NA CAPITAL GAÚCHA



ZERO HORA 22 de setembro de 2013 | N° 17561

JOSÉ LUÍS COSTA 

GUERRA URBANA. Na hora e no lugar errados

Entre as 240 vítimas de homicídios na Capital até agosto, muitas não tinham relação com o crime e morreram de graça



A pipoca espocava no microondas, enquanto a cerveja gelava no freezer, a poucos metros da TV ligada, à espera do desfile da escola de samba do bairro.

Eram 23h30min de 9 de fevereiro, na Restinga, zona sul da Capital, e a morte rondava a casa de Luciano Trindade da Rosa.

Tudo indicava um sábado de Carnaval tranquilo. A água recém havia voltado às torneiras de casa, e o gráfico, de 34 anos, aproveitou para encher a piscina plástica, na parte da frente do pátio. Preparava o terreno para curtir a manhã de sol do dia seguinte com a irmã e os sobrinhos. Mas Luciano só tinha alguns segundos de vida. Em frente ao portão, um homem armado de revólver tentou matar outro em razão de uma desavença por drogas. E um dos tiros acertou em cheio a testa de Luciano.

O criminoso desapareceu em uma moto, o desafeto fugiu, ferido, e Luciano tombou ao lado dos quatro cães de estimação. Desesperados, eles latiram sem parar. Um subiu no peito do dono e não deixou ninguém se aproximar.

Luciano nada tinha a ver com crimes. Mas foi vítima de uma guerra silenciosa que ocorre na Capital, quase imperceptível para a maioria dos 1,4 milhão de porto-alegrenses. O assassinato de Luciano emerge de um levantamento produzido a partir de reportagens de Zero Hora e Diário Gaúcho. Foram analisados 240 homicídios ocorridos nos oito primeiros meses do ano na Capital – média de 30 por mês (um por dia). Não foram considerados no levantamento latrocínios (quando a vítima é morta em roubo).

A pesquisa ressalta como regiões mais sangrentas as periferias nos extremos da cidade – bairros Rubem Berta, Mario Quintana e Sarandi, na Zona Norte, e Restinga, na Zona Sul – e áreas tradicionalmente conflagradas, como o Morro Santa Tereza.

Tráfico é responsável por nove em cada 10 assassinatos

O levantamento aponta que os cinco bairros concentram um terço de todas as mortes registradas no período na Capital. E revela uma tendência preocupante. A matança comandada por traficantes é cada vez mais expressiva – segundo estimativas de autoridades, os pistoleiros do tráfico são responsáveis por nove em cada 10 homicídios registrados em Porto Alegre.

Costuma-se dizer que o perfil de quem mata é igual ao de quem morre: aliados que se rebelam para controlar bocas de fumo, quadrilheiros rivais e clientes que não pagam dívidas. Mas, nesse meio, também existem vítimas de verdade – inocentes, como Luciano. Assim, a violência que cala inimigos também acaba sendo a mesma que silencia quem nada tem a ver com as disputas entre traficantes. Cidadão pacato, Luciano jamais entrou em uma delegacia de polícia, nem para registrar uma perda de documento.

– Solteiro, sem filhos, a vida dele era trabalhar e cuidar dos cachorros. Estamos muito revoltados. É difícil aceitar. Queremos justiça – desabafa Fabiana Trindade da Rosa, 37 anos, irmã e colega de trabalho de Luciano.

Um suspeito foi preso dias depois, trocando tiros com policiais, quase no mesmo lugar. Envolvido em assalto e tráfico, portava um revólver cuja perícia comprovou se tratar da mesma arma que matou Luciano.


Jovem morto ao pisar em território proibido

Outro caso chocante ocorreu 10 dias antes da morte de Luciano. Marlon Padilha, 15 anos, foi morto porque não podia por os pés no Beco Cecília Monza, controlado por uma facção rival da que comandava a região onde morava. Ao lado de um amigo, o jovem – sem passagens pela polícia – recuou após ser alertado da “invasão territorial”, deu alguns passos de volta, mas mesmo assim, foi executado com um tiro na nuca.

Em março, na Vila Funil, bairro Tristeza, Cristiano da Cruz, 32 anos, trabalhador em uma empresa de limpeza, foi morto a tiros por três homens a mando de um presidiário. O “pecado” que custou a vida de Cristiano: comprou uma casa que pertencia ao traficante expulso da vila.

Na Zona Norte, a batalha de quadrilhas já levou, por duas vezes, terror a pacientes, médicos e enfermeiros dos hospitais Cristo Redentor e Conceição – cenários de uma execução e de uma tentativa de homicídio, que se consumou na rua dias depois. Confrontos nos bairros Mario Quintana e Protásio Alves – em especial, entre gangues da Chácara da Fumaça e da Vila Laranjeiras –, já somam 23 mortes no ano. Em abril, passageiros de um ônibus ficaram em estado de choque ao testemunhar a execução de um homem a tiros. E, em junho, moradores foram expulsos de casa e três moradias acabaram incendiadas.

Sinal de alerta na Restinga


O garçom de Viamão André Luis dos Santos Leal, 24 anos, comprou buquê de flores e contratou, por pelo menos três vezes, serviço de telemensagem para uma ex-namorada, na tentativa de reconquistá-la.

Na última vez, em 30 de julho, não encontrou a mulher, foi perseguido e executado com cinco tiros dentro do carro de som. O motivo: a insistência da homenagem estaria “chateando” traficantes da vizinhança.

– Morreu por amar demais – acredita o delegado Gabriel Bicca, da 4ª Delegacia de Homícidios e Proteção a Pessoa, responsável pela investigação do caso.

Na Restinga, assim como nos bairros Rubem Berta, Santa Tereza e Lomba do Pinheiro, a Secretaria de Segurança Pública (SSP) desenvolve o programa Território da Paz, iniciativa que visa a frear a violência com ações policiais e projetos sociais.

Conforme dados oficiais, os assassinatos nos quatro bairros caíram desde que o projeto foi criado, em setembro de 2011. Nos primeiros oito meses de 2013, a redução foi de 12,5% (de 80 para 70) em relação ao mesmo período de 2012. Mas, na Restinga, os crimes subiram (de 15 para 22). Para o sociólogo Juan Mario Fandino, membro do Núcleo de Estudos sobre violência da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), as mortes acontecem porque os traficantes são menos suscetíveis à presença policial.

– A criminalidade entre gangues é endógena. Elas se matam e acertam contas de qualquer modo.

Bandidos que saem da cadeia tentam recuperar terreno

Conforme o secretário estadual de Segurança Pública, Airton Michels, a polícia está atenta ao caso da Restinga:

– Lá, existem grupos que se enfrentam há anos. Uns saem da cadeia e voltam para tentar retomar seus pontos. Detectamos essas disputas e estamos agindo, capturando foragidos, apreendendo armas. Em setembro, o número de homicídios vai reduzir na Restinga.


OS BAIRROS MAIS VIOLENTOS
Com a Restinga, outras quatro regiões concentram 36,2% dos homicídios na Capital
RUBEM BERTA
 - População: 87,3 mil
- Renda média mensal por domicílio: 4,05 salários mínimos
- 22 assassinatos
- Localizado na Zona Norte, é o bairro mais populoso de Porto Alegre. Desde meados da década passada, o Rubem Berta convive com a desagradável fama de região mais violenta da Capital, ao assumir a liderança no ranking de homicídios na cidade. Também é um dos recordistas nos levantamentos de roubo e furto de veículos.
MARIO QUINTANA
- População: 27,7 mil
- Renda média mensal por domicílio: 2,45 salários mínimos
- 15 assassinatos
- Oficializado em 1998, é um dos bairros mais novos e também um dos mais pobres de Porto Alegre. A renda média é 14 vezes menor do que no bairro Bela Vista, por exemplo. A região é formada por condomínios populares e ocupações no limite com os municípios vizinhos Alvorada e Viamão.
SANTA TEREZA
- População: 47,1 mil
- Renda média mensal por domicílio: 78 salários mínimos
- 14 assassinatos
- O Morro Santa Tereza é alvo da ocupação urbana desordenada, em uma área da cidade considerada nobre. O movimento resultou no crescimento da Vila Cruzeiro, um conjunto de comunidades situadas em torno do Santa Tereza. O local tem vista privilegiada da cidade e do Guaíba, mas a visitação é perigosa por causa de tiroteios entre traficantes e risco de assaltos.
SARANDI
- População: 59,7 mil
- Renda mensal por domicílio: 5 salários mínimos
- 14 assassinatos
- Vizinho do Rubem Berta, o bairro enfrenta problemas semelhantes, como a expansão de comunidades carentes. Em razão de vias de acesso fácil à freeway (Assis Brasil) e a saídas para cidades vizinhas como Canoas (freeway e Assis Brasil) Cachoeirinha e Gravataí (freeway e Assis Brasil) e Alvorada (Baltazar de Oliveira Garcia), é, também, campeão em roubo de carros.

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