terça-feira, 18 de junho de 2013

Coletor de lixo diz que fatura mais que professor no RS


Índio e analfabeto, coletor de lixo diz que fatura mais que professor, mas prefere viver nas ruas da capital gaúcha

Apesar de morar na rua, Loreni diz que é feliz Foto: Tiago Lobo / Especial para Terra
Apesar de morar na rua, Loreni diz que é feliz
Foto: Tiago Lobo / Especial para Terra
Ele é limpo, não pede esmolas e paga pelas suas coisas. Mesmo analfabeto, fatura, por mês, mais do que muitos professores do Estado do Rio Grande do Sul e possui até poupança na Caixa Econômica Federal. Sua profissão? Coletor de materiais recicláveis.

Com o que ganha coletando lixo, Loreni Alves da Silva, aos 40 anos, poderia alugar um kitnet, erguer um barraco ou até mesmo um apartamento popular, mas nem pensa nisto. Gosta mesmo é da rua. Hoje acumula 35 anos e vive dentro de uma barraca que custou R$ 130. Ele leva e trás sua casa para onde bem entende dentro de um carrinho de papeleiros.

Na última vez que o vi, seu endereço ficava em algum número esquecido na Avenida Praia de Belas, em frente ao Corpo de Bombeiros. Era início de dezembro e o homem andava atarefado preparando seu carrinho para a chegada do Natal.

Natural de Tenente Portela (RS), nos seus documentos só consta o nome da mãe, Clair Alves da Silva. Uma índia Guarani que deixou este mundo quando Loreni tinha cinco anos. Ele não admite, e se esquiva falando de uma busca por liberdade, mas foi aí que sua vida de mendigo começou.

Ao invés de ir morar com o pai, o índio da tribo Kaingang Armando Almeida, e seus outros 23 irmãos na reserva “Terra Indígena Guarita”, em Tenente Portela (RS), o exótico indiozinho de olhos verdes adotou a rua e teve que aprender a se virar.

Com a pele maltratada do sol Loreni faz tudo o que as pessoas “dos edifícios” fazem.  Acorda às 6h da manhã e sai para caminhar. Volta, desmonta o acampamento da selva de pedra e vai para o trabalho. Ou, no caso, o trabalho vem até ele: papel, plástico, alumínio e tudo o mais que caiba no seu carrinho é coletado pelas ruas para ser vendido e revertido na sua principal fonte de renda. Ele fatura, por dia, uma média de R$ 80 a R$ 100.

Com este dinheiro compra comida, roupas, e ainda guarda uns trocados na sua poupança. Aliás, Loreni, que não é bobo, bolou uma estratégia para não ser barrado em estabelecimentos comerciais: “quando preciso comprar alguma coisa já entro com a carteira na mão, para eles verem que vou pagar”.

Bem, talvez tenha sido a falta de educação básica que tenha feito o homem acreditar que cocaína nasce em árvore. Inclusive ele jura que já viu uma, e explica a teoria: “tem a árvore fêmea e a macho. A fêmea tem quase três metros. A árvore macho é baixinha”. Sobre experiências com drogas Loreni conta que já provou de tudo, e dá uma viajada falando numa tal de heroína preta, branca e roxa. Vá saber quanta droga ele usou para ver coisas assim.

A verdade é que ele não sabe como, mas conseguiu sair desse mundo e hoje está limpo, não usa nada, só a tradicional cachaça que os mendigos carregam para espantar o frio do rigoroso inverno gaúcho. Ah, e cerveja, mas garante que bebe “com moderação”. Durante a apuração desta reportagem não ouvi um relato de alguém que o tenha visto caindo de bêbado. Seu único vício é o cigarro. E tem que ser Hollywood original.

A pedagoga da Fundação de Assistência Social e Cidadania de Porto Alegre (Fasc), Patrícia Mônaco, conhece Loreni há seis anos. Ela revela a suspeita de que o homem sofra de uma doença psíquica: “Para mim o Loreni sofre de esquizofrenia.” Conta, também, que o sujeito costuma procurar a Fasc quando precisa de algum auxílio com a sua documentação. De resto, o índio urbano alimenta sua história sem muitos interlocutores.

O perigo mora ao lado
“Essa vida na rua é perigosa”, informa Loreni. E tenta comprovar: 18 tiros, 14 facadas e 24 “quebraduras” passam pelos cálculos do meio Guarani, meio Kaingang. É difícil saber se existe precisão nas contas do homem, mas ele mostra várias marcas pelo corpo, incluindo a mais recente: ferimento que deixou sua perna enfaixada após levar uma bordoada com um pedaço de ferro, durante uma tentativa de assalto.

Mas quem assalta um morador de rua? Outro companheiro de situação. E dentre tantos pertences mais vistosos, como uma pequena TV recém adquirida, a intenção era levar as duas rodas gastas de motocicleta que movimentam seu carrinho. Para maioria das pessoas isso é lixo, mas entre outros mendigos é artigo de luxo e vale matar pelo tesouro.

O homem que hoje tem pouco já perdeu tudo. Mais de uma vez. Em uma delas quase foi queimado vivo por um traficante debaixo do viaduto da Conceição. “Eu tava dormindo e senti um calor no rosto, e como durmo com a cabeça tapada só puxei o cobertor, aí olhei para cima e a minha barraca estava pegando fogo”, conta Loreni. Ele explica que foi o tempo de sair do seu abrigo e vê-lo sendo consumido pelo fogo. Perdeu roupa, comida, colchão, cobertor e até uma antiga TV em cores alimentada por bateria.

Em outro momento ele jura que precisou enfrentar uma cobra. Diz que era Cascavel.  Conta que estava na beira de uma estrada, indo para o Mato Grosso “do Norte”, como gosta de frisar, e acordou com o animal dentro da sua barraca, pronto para dar o bote. Então fez uma oração, pois apesar de não ter religião o homem acredita em Deus, e conseguiu pegar o animal e tirá-lo da sua casa.

Ele se defende como pode. Carrega um facão, bem escondido, para afugentar marginais. Mas é só chegar perto para ver que ele não representa perigo. Nem esmola pede. Diz que se sente mal: “Acho que cada um tem que fazer a sua lutinha para sobreviver”.

E de fato ele luta. Quando acaba o inverno, Loreni vai até Viamão, com o carrinho a reboque. Do meio do mato ele retira a matéria prima para seu sustento no verão. Taquaras e pedaços de madeira, além de garrafas PET, que usa em peças de artesanato. Tradição de família e talvez a única herança do pai.


A filosofia da amizade

O doutor em serviço social Edgar de Andrade Xavier, 72 anos, é um dos poucos que se preocupa com o estado de Loreni.  O senhor que estuda Filosofia na PUCRS, e mora no bairro Bom Fim, conhece o mendigo faz mais de seis anos e afirma que nunca o viu embriagado ou drogado. “O Loreni é muito corajoso. O admiro muito pela forma como ele enfrenta as coisas”, explica Xavier que recebe telefonemas frequentes do amigo das ruas, feitos de qualquer orelhão que esteja ao alcance de uns passos.

“Viver na rua não é defeito, e o difícil quem faz é a pessoa”, explica Loreni, alegre ao dizer que está “legal” na rua, com a sua barraca. Mas sobre amizade, o homem que acampa nas praças de Porto Alegre, é desconfiado: “Amigos sinceros são os dentes e assim mesmo eles mordem a gente”.

Mordiam, Loreni. Mordiam. Pois no dia 9 de julho de 2003, um sábado, devido a um acidente de trabalho, Loreni perdeu todos os amigos que tinha na boca. Demolia um prédio a golpes de marreta, na avenida Osvaldo Aranha, para uma empresa de entulhos, quando uma parede caiu por cima do coitado e o fez despencar do 6º andar.

Segundo Loreni, o engenheiro da obra teria fugido do local, levando sua carteira de trabalho e nunca teria pagado indenização pelo acidente. Depois de meses no hospital, Loreni voltou às ruas. A dentadura que usa atualmente custou R$ 750 e cada centavo foi pago com o dinheiro que ganha como catador do que, comumente, chamamos de lixo.

Lembranças
Perder a mãe tão cedo dói no pobre homem até hoje. Os pais se separaram quando Loreni era um bebê de um ano e meio. O pai não o registrou e o morador de rua fala pouco dele. Diferente da mãe que lembra com afeto, e se emociona ao tentar descrever a beleza dos seus longos cabelos negros que “chegavam quase nas canelas”. Loreni conta que ela era “benzedeira, curandeira e parteira”, nessa ordem mesmo. E informa, com orgulho, que a mãe teria feito os próprios partos dos 12 filhos que teve com seu pai. Os outros 12 são do segundo relacionamento de Armando Almeida.

Também fala de suas viagens quando criança, acompanhado do pai. Diz que passou pelo Mato Grosso, Rondônia e que o pai morou um tempo na Argentina. A cada dois anos Loreni volta para a cidade natal de Tenente Portela, na reserva indígena, para ver Armando Almeida e os irmãos que dão “dois times de futebol”, como brinca. Conta que Armando até pede para que ele fique por lá, mas Loreni prefere Porto Alegre e sua vida dentro de uma barraca. “Os passarinhos não gostam de estar trancados. As pessoas também não”, diz o homem que revela não ter sonhos, pois “o sonho para nós (moradores de rua) é um pesadelo”.

O amor veio da África?
Reza a lenda que Loreni teve uma companheira durante 15 anos. “Uma africana”, explica. Ou uma descendente, já que a cidade onde se conheceram possui um pequeno foco de colonização africana. Carmem Silva Antônia da Silva teria conhecido Loreni em uma feira, no município de Lajeado, em 1994. Carmem seria uma garota de 19 anos que queria aprender artesanato e teria pedido para Loreni a ensinar. “Não posso te ensinar, eu moro na rua”, foi a resposta. Para sua surpresa, e desatino da família da jovem, ela resolveria viver com Loreni. É difícil comprovar esta parte da história, a suposta esposa de Loreni é um fantasma no município de Lajeado: não possui nenhum registro com o nome que ele informou para o repórter.

Se a mulher existe, pode ter vivido nas ruas, ao lado de Loreni, por 14 anos, até 2008 quando se separaram. Segundo ele, a separação foi amigável e eles sempre viveram como irmãos, sem brigas.

O saldo da relação seriam quatro filhos: Elizabeth de 18 anos, que mora com o pai de Loreni, na reserva indígena; Eliane de 14 anos e Ezequiel, de 13, que moram com a mãe em Lajeado; e Elias de 17 que Loreni jura que estuda na França, como intercambista da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). Quando pergunto o sobrenome de Elias, Loreni não faz ideia. Dá a entender que o filho foi adotado e desconversa. As assessorias de comunicação da Ufrgs e da Universidade de Grenoble, na França, que possui convênio com a instituição gaúcha, informam que não fornecem dados sobre seus alunos. A reportagem não conseguiu localizar a família e o suposto filho de Loreni.

No entanto, a riqueza de detalhes com que o homem descreve a vida que supostamente levou ao lado da esposa, e a faísca no olhar ao lembrar de Carmem não parecem fazer parte de um delírio. Em todas as conversas que tivemos, Loreni se mostrou lúcido, sóbrio e correto nas informações. Podia até não lembrar o nome completo de Xavier, que tanto o ajuda, ou da irmã de uma ex-companheira, para quem faz ligações com certa frequência, mas os números de telefone, passados de cabeça, sem qualquer anotação, estavam perfeitos.

O plano do governo
Em 2004 o governo Federal criou o Sistema Único de Assistência Social (Suas), que regula e organiza serviços e programas da Política Nacional de Assistência Social. Este conjunto de ações foi responsável por colocar os moradores de rua de volta aos mapas de todo o Brasil. A assistente social, Lucimar Rodrigues de Souza, que também trabalha na Fasc, define a antiga política como “higienista e de exclusão”. Até 2004 um morador de rua que precisasse de atendimento em um hospital público, por exemplo, não conseguiria nem injeção na testa. Não era visto pelo governo como cidadão. Apenas como um problema, uma parte viva da rua que devia tomar chá de sumiço.

Atualmente, mesmo que a pessoa more na rua e não tenha documentação, ela possui o direito de acessar serviços básicos como saúde e educação. E alguns moradores de rua já ganham até Bolsa Família. Um valor que não chega aos R$ 80. Pergunto para a pedagoga da Fasc, Patrícia Mônaco, que tem 12 anos de experiência na lida direta com pessoas em situação de rua, se o Bolsa Família, para mendigos, não contribui para que eles permaneçam na sarjeta. Ela é direta na resposta: “Não acho possivel sobreviver nas ruas com pouco mais de R$ 70, que é o que eles recebem”. Ela também explica que, para receber o benefício, a pessoa é acompanhada por algum órgão do governo.

A boa notícia para os gaúchos é que Porto Alegre, além de cidade modelo quando se fala em assistência social, desenvolve um trabalho de vanguarda: neste ano lançou um Plano Municipal de Enfrentamento à Situação de Rua, sendo a primeira cidade brasileira a ter uma política própria para combater este problema. O plano busca melhorar a qualidade de vida da população adulta em situação de rua e age em parceria com outros órgãos do Governo, como secretarias municipais e o Departamento Municipal de Habitação.

Mas toda a articulação dos órgãos públicos esbarra em dois grandes problemas. O primeiro deles é o preconceito da sociedade civil que acaba tratando estas pessoas como marginais ou parasitas. Patrícia conta que a Fasc recebe, com frequência, ligações de pessoas pedindo (ou exigindo) a remoção de mendigos das portas das suas casas. Acontece que a Fundação não faz o tipo “Departamento Municipal de Limpeza Humana”. Seu trabalho tem o objetivo de incluir pessoas que estão em situação de risco e vulnerabilidade social, através de programas e serviços que atendem a crianças e adolescentes, famílias, moradores de rua, idosos e pessoas com deficiência.

“Se o morador de rua vive naquele lugar há anos, na cabeça dele é a sua casa. Como dizer que ele precisa sair?”, questiona Lucimar. O segundo problema é que muitos deles não querem sair da rua. A rede de atendimento da Fasc é robusta mas possui dificuldades para atrair e os moradores de rua. A rede é composta por abrigos, albergues e os chamados Centros de Convivência, que, juntos, possuem 900 vagas entre albergues e abrigos. Mas com exceção dos abrigos, raramente a rede está lotada.

O fenômeno de um morador de rua se submeter a regras de convivência de um abrigo, por exemplo, é como um adolescente ir morar sozinho e ter que voltar para a casa dos pais. É difícil. Então, dos 1347 moradores de rua, adultos, catalogados no último censo da Fasc, desenvolvido em 2011, em parceria com a Ufrgs, apenas 330 se encontravam em algum tipo de refúgio oferecido pela Fundação.

Um padrão se repete
Algum tempo depois da ruptura com sua musa africana Loreni engatou um novo romance com uma colega de rua: Noralice da Silva Chaves, de 49 anos. Noralice poderia ser a alma gêmea de Loreni se não fosse o alcoolismo.  Foi morar na rua por opção e o romance foi sério, a ponto de a nova namorada apresentar Loreni, ou Cigano, como também é conhecido, à sua família.

O casal de moradores de rua acampou no pátio da irmã de Noralice, Sandra Chaves, 48 anos, que trabalha como auxiliar de limpeza em uma clinica de cirurgia plástica. Sandra desabafa e revela que sempre que via um morador de rua, entristecia e se perguntava: “Será que essa pessoa está ali por não ter um lar?”. A resposta veio de forma amarga, quando Noralice trocou sua casa pelas ruas frias de Porto Alegre. A mulher teve 8 filhos. Nenhum com Loreni. Hoje um está preso por tráfico e outro se suicidou com uma corda amarrada no pescoço.

Sandra confirma o parecer de Xavier e ajuda a sustentar a tese de Patrícia de que o sujeito sofre de esquizofrenia: “Loreni é antidrogas e não bebe álcool. Não posso dizer que ele é maluco, mas não é uma pessoa muito normal. Quando esteve na minha casa colocou um palitinho de fósforo em cima de uma cadeira e começou umas rezas, chamando o palito de pai”, relembra Sandra.

Até hoje Loreni liga, de tempos em tempos, para Sandra. Pergunta pela família, filhos, como estão todos e pede notícias de Noralice, com quem não divide mais sua barraca. As ligações são feitas de telefones públicos, como quando faz contato com Xavier. Ambas ligações do tal Cigano partilham de uma peculiaridade: nunca foram “a cobrar”. Loreni compra um cartão telefônico exclusivamente para isso. E dessa forma intrínseca lá vai Loreni, curiosamente feliz, dizendo que em seu caminho está “só ele e Deus”. Mas, no fundo, o homem solitário ainda procura a sua tribo. Talvez seja, de fato, um cigano de espírito.

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