quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Estupros desafiam a maior democracia do mundo



Tratados como tabu e encobertos por um sistema social tradicional, violência contra a mulher deixa Índia à flor da pele

Estupros desafiam a maior democracia do mundo Findlay KEMBER/AFP PHOTO
"Área designada para estupro", diz um grafite atribuído ao artista Rush em Nova Délhi, onde uma jovem foi agredida e violentada e morreu duas semanas depoisFoto: Findlay KEMBER / AFP PHOTO
BIBIANA NILSSON/Especial
"Sou forçada a não me movimentar livremente em meu próprio país porque há medo. Um medo que não pode ser explicado, só vivido. E essa é uma experiência que nem em sonho eu gostaria de desejar a alguém." O desabafo é de Saraswati Patel (o nome foi mudado a pedido dela, por razões de segurança).
Indiana de 28 anos, Saraswati mora em Vadodara — eleita segunda cidade mais segura da Índia num levantamento realizado em dezembro de 2011 pelo portal youguv.com. Apesar de viver com os pais numa região com baixos níveis de criminalidade, ela sofre do mesmo temor que assola milhões de indianas: o de ser a próxima vítima de um crime sexual.
O assunto é tabu no país, mas voltou à tona nas últimas semanas, em decorrência da morte de uma estudante de fisioterapia vítima de estupro coletivo, em Nova Délhi, e do julgamento dos acusados. O crime hediondo chocou não só os indianos, mas a comunidade internacional, chamando atenção para uma realidade até então desconhecida do subcontinente.
O temor das indianas não é infundado. Estatísticas recentes revelam números estarrecedores: a cada 22 minutos, um estupro ocorre na nação de Gandhi; a maior parte deles em Nova Délhi, capital. De acordo com dados oficiais divulgados pelo Escritório Nacional de Registros de Crimes, o estupro é o tipo de crime que mais cresce no país. Apenas um em cada quatro acusados é punido. E sabe-se que os números, ainda que altos, não refletem fielmente a real dimensão do problema.
Não faltam razões para o sofrimento calado: além de saberem que dificilmente o agressor sofrerá algum tipo de condenação, as vítimas de estupro sofrem também com o preconceito dentro e fora do núcleo familiar. Estima-se que, em 92% dos casos, o estuprador é conhecido da vítima.
O fato de a família ocupar importância central na vida de um indiano também ajuda a explicar a opção pelo silêncio. Se denunciar o estupro, a mulher corre o risco de ser discriminada, arrastando para essa condição todo o núcleo familiar. A condenação é então multiplicada e invertida: como se não bastasse a violência sofrida, soma-se a ela o preconceito — dentro e fora família.
Desigualdade de gênero está na raiz de casos crescentes da agressão sexual
Como o casamento ainda é considerado o acontecimento mais importante na vida de um indiano, uma mulher que não casa ou é divorciada não é vista com bons olhos. Nesse contexto, não é tão difícil entender como se perpetua a prática do dote (pago pela família da noiva) e o porquê de as indianas vítimas de estupro optarem pelo silêncio.
De 1971 a 2011, houve um aumento de 873% no número de estupros. O total de casos registrados no último ano da série, o retrasado, foi de 24.206. A estatística suscitou debates e abriu espaço para incongruências, revelando a voz de uma parte da sociedade que não avançou na mesma velocidade da economia indiana.
— Casos de estupros aumentaram porque homens e mulheres estão interagindo com mais liberdade — disse Mamata Banerjee, em outubro.
A afirmação chocante seria indigna de nota não fosse sua autora governadora de Bengala Ocidental, um dos Estados mais populosos da Índia. Ela não estava sozinha no festival de explicações pouco fundamentadas para o aumento de casos de estupro no país. No mesmo mês, Jitender Chhatar (líder de um conselho de casto no Estado de Haryana) virou notícia ao culpar o consumo de fast food — como chowmein, uma sopa chinesa — pela maior incidência de crimes sexuais. Já os líderes de um outro conselho de castas, na região de Uttar Pradesh (norte da Índia), elegeram a calça jeans e o aparelho celular como culpados. Para combatê-los, foi decretada a sua proibição.
Considerada a maior democracia do mundo, a Índia enfrenta desafios proporcionais ao seu tamanho e diversidade. Em comum, os 28 Estados que compõem a República têm pouco mais do que a constituição e a moeda.
A globalização e o avanço econômico dinamizaram o país, mas não de maneira uniforme. Em transição lenta, mas ainda fortemente machista, a sociedade indiana não confere a homens e mulheres a igualdade direitos assegurada no preâmbulo da constituição. E essa desigualdade está na raiz das agressões sexuais.

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